Nos dias de hoje vemos em propagandas e notícias sobre cerveja uma associação do “puro malte” com qualidade. Parte deste senso comum tem uma explicação muito pertinente: a esculhambação no uso de arroz e milho pelas mega cervejarias nas “lagers” comerciais insípidas e sem sabor. Contudo a qualidade, em termos históricos e tecnológicos, é muito mais complexa.
A antiga história da cerveja caminhou sempre lado a lado com a história do sedentarismo e desenvolvimento agrícola, principalmente nas regiões da bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates e proximidades. Os grãos, como hoje, serviam para produzir diversos alimentos, entre eles a cerveja. Portanto, numa leitura tradicionalista, os ingredientes originais da cerveja são os insumos produzidos nas lavouras pŕoximas a cervejaria.
Ao longo dos séculos o uso de diversos grãos (e não só grãos, tubérculos e especiarias regionais também) foi se desenvolvendo em uma, cada vez mais documentada e fundamentada, tecnologia cervejeira. Porém as sociedades europeias foram atingidas por um período histórico lamentável de quase dez séculos chamado de Idade Média. Os primeiros 5 séculos foram caracterizados por forte deterioração econômica e cultural, e os seguintes por excessiva especialização da monocultura, em termos agrícolas. E por fim no século XIV a peste negra, morte de mais de 100milhões de pessoas e miśeria generalizada.
Mas o que isso tem a ver com cerveja? Tudo! A escassez de grãos e mão de obra e sobra de fome fazia com que a maior parte dos cereais fossem consumidos com alimentos, e não usados na produção de cerveja. Ah, mas pode ter certeza: a produção de cerveja não parou. Os aventureiros começaram a fazer cervejas com baixíssimos teores de malte, colocando na mostura restos de comidas prontas, grãos velhos, e praticamente tudo que pudesse conferir açúcar ao mosto. Não é de se duvidar que começaram a se produzir cervejas ruins, e aliadas às condições sanitárias provavelmente contaminadas. Isso começou a mudar na Baviera, com a conhecida e polêmica “Reinheitsgebot”, que tinha objetivo de regulamentar o uso de grãos para pão e cerveja, controlar o número de produtores e melhorar o padrão de qualidade – além de obrigar todo mundo a comprar o lúpulo que eles tinham em excesso. No período imediatamente seguinte de fato as cervejas da Baviera ganharam destaque pela qualidade.
Na época a Lei da Pureza foi um suspiro, trazendo um aspecto técnico e menos obscurantista da produção de cerveja. Porém outros países tem cervejas fabulosas que vão grandes quantidades de adjuntos, sendo o maior exemplo a escola belga. A principal jogada dos Bávaros foi efetiva menos não usar adjuntos, e mais por não usar qualquer tipo de grão de baixa qualidade ou estragados.
Hoje experimentamos com as cervejas de massa um encontro a essa situação pré Lei da Pureza. As cervejas com pouco sabor, nenhum aroma e produzidas na lógica do baixo custo não são só assim pelo alto percentual de adjuntos, mas também pelo conjunto das técnicas usadas. Porém a má fama pesou mais em cima dos adjuntos não maltados, conferindo consequentemente um signo de qualidade nas cervejas puro malte.
Os adjuntos podem sim abaixar o custo das cervejas, mas a motivação do seu uso é muito mais extensa. Eles podem ser usados para aumentar ou reduzir o corpo da cerveja, conferir sabor especial, ter um perfil de dextrinas que favoreça a fermentação por determinados microorganismos e até conferir maiores teores de fibras prebióticas e compostos fenólicos antioxidantes. Esses motivos, inseridos na ascensão das cervejas especiais, artesanais e caseiras trouxeram um “renascimento” dos adjuntos com centenas de rótulos explorando-os em cervejas inovadoras e deliciosas.
O uso desses insumos podem desencadear, entretanto, alguns problemas no processo, desde alta viscosidade e formação de gel gerando entupimentos até impactos negativos na fermentação.
Você é de Sao Paulo? Tem interesse de aprender um pouco sobre o uso destes adjuntos, com dicas práticas? Convido a vir no Workshop Gratuito sobre Uso de Adjuntos não maltados que Acerva Paulista está organizando na Prazeres da Casa – Brew Shop. Será as 10h do Sábado dia 27-08… aproveite a visita a sua Brew Shop preferida para ter mais conhecimento e degustar uma cerveja para facilitar o bate papo.
Até a próxima
Raul Santiago Rosa, Bioquímico. Conduziu pesquisa sobre impacto de adjuntos na cerveja.
Referências
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